Desamparo com Cerejas

    Toda sexta-feira, às 22 horas em ponto, Bianca cata cem reais de baixo do colchão mofado e sai de república em silêncio.

    Na Av. Lineu Prestes, embarca no ônibus 7411. Seu corpo move-se por conta própria, caminha lá pro fundo, busca um assento. Movimentos involuntários, seguem um trajeto já pronto - é ônibus dentro de ônibus. Os olhos vão se movendo pelas pessoas, movendo-se, movendo-se, esvaindo-se em alguma luzinha que vê pela janela enquanto o transporte chacualha. Alguns minutos se passam e sua mão - um membro estranho - dá sinal para descer.

    Desembarca na Consolação. Suas pernas vão rastejando quase, puxadas por uma corda de nylon, até a Rua Augusta. Ela vai atrás. Desce a calçada com cuidado para que o líquido negro que lhe habita o esôfago não transborde. Está na pontinha, como quando enche o copo com água demais e precisa por o bico e dar um golinho para que não vaze. Mas não há como engolir o que já foi engolido. Resta apenas a cautela para que não pingue.
    
    Enfia-se em um beco ao lado da Praça Augusta. Depois em outro, mais estreito, perpendicular ao primeiro. Há uma porta velha cheia de gravuras antigas – design de uma São Paulo de outra época. A mão (já não é mais sua) bate duas vezes. Alguns segundos. Bianca sente uma úmidade formar-se na testa e arder com ao contato da noite.

    Apesar de tudo, está aqui outra vez.

    –Olá, querida. – Uma mulher de olhos puxados e cabelos brancos gesticula para que entre. Bianca lembra-se de sua psicóloga. – Vamos?

    Lá dentro é quente. O chão é forrado com carpetes e há uma pequena sala com um lustre baixo de lâmpadas amarelas. Um gato preto lambe tranquilamente seu rabo; está empuleirado no vão de uma adega de vinhos. O cômodo nunca agradou a garota.

    –Mesmo de sempre?

    –Isso.

    Tira os cem reais do bolso e entrega-lhe.

    –Pode subir. Ele já esta te esperando, querida.

    Bianca faz que sim e sobe as escadas rangentes. Desequilibra-se. O líquido escuro balança no esôfago e vêm a boca (quase cai!), mas ela o força a voltar para dentro das entranhas.

    Lá em cima é silêncioso. Ela tira os tênis e deixa-os ao lado da porta que atravessa em seguida. O quarto é ainda mais quieto. Não há janelas ou móveis ou coisa alguma, exceto por uma cama de casal - aquelas camas velhas com lençóis velhos com estampa de flores velhas. Há também um homem: meia-idade, um pouco curvado, usa brincos. Ele acena com a cabeça e gesticula para a cama.

    –Está pronta? 

    Bianca apenas assente com a cabeça; tem a impressão que se abrir a boca irá vomitar Tudo. Despe a blusa, deita-se na cama, estica os braços. Vertigem. O homem segura seus pulsos e amarra-os com uma corda grossa, peluda. Faz o mesmo com seus tornozelos. Depois com os joelhos, cotovelos e finalmente a cintura. 

    –Mais apertado. –  Alguém diz. Bianca assusta-se com a própria voz.

    O homem obedece. Depois põe-lhe uma venda grossa nos olhos e tampa-lhe a boca com três camadas de fita adesiva. Apaga a luz e retira-se do quarto. Bianca ouve o trinco da porta fechar.

    Algo se inicia.

    Primeiro Bianca tenta soltar-se. Mexe o corpo de um lado pro outro, espernea, morde, debate os braços, usa toda força que possuí. A cama quase sai do lugar.

    Depois, quando já confirmou seu completo desamparo, ela chora.

    Os ossos fervem, fervem, assam a carne, fazem a pele derreter, grudar nas roupas, no lençol, escorrer pelo chão descomer tudo; as unhas arranham o colchão fingindo que é gente: unhas de bicho, monstro, demônio que é criado e aprisionado em seu criador. O líquido negro explode, vaza pelas narinas em litros, suja tudo, os gritos quase rompem a mordaça. Até as paredes têm medo. Faria ascender-se uma cidade. Faria apagar-se o mundo. 

    E o mundo se apaga.

    Bianca acorda anestesiada horas depois. O homem tira-lhe as amarras, a venda, a fita, seca-lhe os olhos. O quarto esta sujo de piche quente. 

    A mulher levanta-se após o primeiro sono da semana e agradece sorrindo. Seus olhos são cerejas castanhas. 

    Sua mão gesticula uma despedida:

    –Até semana que vem.
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