22 de set de 2025
Porque eu ainda não escrevi um poema
Varro o quarto, tiro o pó da mesa, limpo os óculos. Ponho Vivaldi na vitrola, acendo
uma vela e me sirvo uma xícara de chá-preto. Escolho minha caneta de gel favorita, a com
a ponta mais fininha, e pego uma folha branca do fundo da gaveta. Estralo todos os dedos.
Respiro fundo.
Fecho os olhos e visualizo duas pessoas.
Uma delas usa meias vermelhas, óculos redondos e boina preta. É uma pessoa de
sorrisos, tem um para cada situação: o inocente, o nada-inocente, o de cantinho de boca, o
de quando come chocolate, o de amor. Um amor espaçoso, onde cabe ratos, pombos e
cachorros enormes, fotografias borradas, recortes de revistas e paixões desmedidas e
simultâneas. Ainda de olhos fechados, tento escrever o que vejo: “café quente e jogos de
tabuleiro num dia chuvoso de inverno”, “um grito de alegria estridente no topo de uma
construção abandonada em Santo André”.
A outra pessoa usa meias cor-de-rosa, casaco marrom, fones de ouvido. Há uma
intensidade contagiante em seu contorno, uma chama que nos chama a cantar. Guarda
muitos fascínios e fala sobre eles de tal modo que sua paixão transborda para nós. Em sua
voz, todas as palavras ganham sons próprios. Seu rosto é uma galeira em constate exibição,
cada quadro exprime um ímpeto em sua essência. Escrevo: “banho de sol com mexericas”,
“bicicleta ao lado do mar”, “um raio alegre que pinta o céu em rosa e laranja”.
Abro os olhos para ver os versos que escrevi, mas no papel há apenas uma grande
mancha de tinta. A caneta estourou e os versos de um poema nunca visto se foram para
sempre. Não tem jeito, só me resta gritar.
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