29 de mai de 2025
Assim que abro os olhos, a primeira coisa que percebo é que há uma meia dúzia de homens ao meu redor, todos de pé, me olhando fixamente. Eles mexem os lábios, mas tudo que ouço é um zunido estridente.
Tento me lembrar o que aconteceu: estava voltando pra casa, voltando pra São Bernardo... Mas isso foi durante o dia; agora está de noite. Levanto a cabeça pra ver onde estou, mas alguém me impede. Dói muito. Descubro que estou usando a calçada como travesseiro (e é tão confortável quanto parece). Durante alguns momentos perco o ar, desesperada por não fazer ideia de quando ou onde estou, nem o motivo de estar aqui. Peço por meu celular e alguém o entrega. É dia vinte e seis, segunda, sete da noite. Eu saí de Santo André domingo a uma da tarde, o que significa que já se passaram mais de vinte e quatro horas desde minha última lembrança.
O desespero me faz querer acordar.
Mas não durmo. Mas eu ainda sou eu, certo? Todo o resto continua no lugar, não só os membro do corpo, mas as memórias também. Certo? Abro o spotify e coloco Dreams do Craneberries no volume máximo. Sim, ainda gosto dessa música, ainda sou eu mesma. Ou isso também é uma ilusão?
Aquela matilha de homens me olha com curiosidade, alguns parecem estar tirando fotos. Será que sou famosa? Genuinamente me questiono se bati a cabeça forte demais e esqueci que sou uma guitarrista de punk nacional. Não: esses caras não devem ter bom gosto.
Eu deveria ligar para alguém. E dizer o que? Eu não sei o que aconteceu. Olho para um rapaz ao meu lado que veste uma jaqueta azul e parece bem fascinado com tudo que está acontecendo. O que aconteceu? Pergunto. Não ouço direito suas palavras, mas pelo movimento dos lábios compreendo que sofri um acidente de moto.
Inclino um pouco a cabeça para verificar minha situação. Pulso, joelhos e ombros esfolados, cortes nas coxas e tornozelos, meia calça suja de sangue. De alguma forma, me agrado com essa aparência. Noto também que não consigo mexer meu braço esquerdo: o mínimo indicio de movimento me faz grunhir de dor. Melhor deixar ele quetinho.
Verdade - lembro-me de repente - preciso ligar para alguém.
Faço umas cinco ligações e me esqueço de todas em seguida. Alguém atendeu? Eu não lembro. Só quando me enfiam na ambulância percebo que não falei com minha família. Mando o endereço em tempo real para meu pai e a mensagem “sofri um acidente”.
O teto da ambulância é mais confortável que o céu noturno: da uma sensação de estabilidade, faz-me pensar que estaria tudo bem não saber quem eu sou, porque alguém - algum médico - me daria uma paulada na cabeça quando necessário para me lembrar de comer e não fazer xixi na calça.
A paramédica aparece e tira o celular das minhas mãos. Lá se vai minha música. Me sinto uma criança de castigo e fico entediada na mesma hora. Para me entreter, pergunto o nome da mulher que está me socorrendo. Lilian, ela diz. Lilian tem cabelos crespos, mãos geladas e se assemelha bastante a uma criatura divina. Quero continuar a conversar com ela, mas agora ela está ocupada brigando com alguém. É um homem que está numa maca ao meu lado. Ele mexe no celular. Está jogando paciência? Lilian pede para ele parar, mas é teimoso. Descubro que não gosto dele.
Olhando para seu rosto, lembro de repente que ele é o motorista do uber-moto. Então foi isso. Bem que imaginei que fosse acontecer alguma hora.
Ouço uma voz conhecida e meu coração palpita - provavelmente mais forte do que no momento do acidente. Sim, vou acompanhar ela - ouço Ade dizer. Ela chegou rápido ou eu que perdi a noção do tempo? Não importa: seu rosto aparece em minha visão e de repente estou sorrindo.
É uma milagre: de chofre descubro quem sou: sou a amiga daquela garota, sou a garota que a ama. Os paramédicos a levam para frente (não Lílian, eu confiei em você!) e sua figura some tão depressa quanto apareceu. Algumas lágrimas me escapam os olhos - lágrimas dum líquido momentaneamente frio e dolorido, mas continuamente alegre, firme e brilhante.
Como foi que acabei assim? Não ali, naquela maca, naquela ambulância. Quero dizer, como foi que acabei assim: envolta de pessoas que me amam. Pessoas que poderia abraçar durante o dia todo. Pessoas que conheci por um pequeno acidente que teceu colisões cósmicas de contentes coincidências para eu estar exatamente ali, sob aquelas luzes brancas, com uma meia manchada de sangue e um olho roxo, emocionada porque agora possuo motivos para continuar a existir.
Lilian volta e diz que eu vou ficar bem. Ela está certa. Não importa o que acontecer daqui para frente, eu estou exatamente onde eu deveria estar.
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